Permitir Cookies

Este site utiliza cookies para melhorar a experiência do usuário. Veja nossa Política de Privacidade


O Decanter de Vênus - Leonardo Colle


 

Não irei para a forca. Não... Jamais por tal crime em questão. Crime cometido por minhas mãos, mas cujas intensões nunca poderiam ser atribuídas a mim.

Fui apenas uma peça, componente de algo maior, que caiu em uma armadilha antiga, e é por isso que hoje escrevo essa nota a ser deixada dentro deste belo decanter de cristal.

A verdade, cruel e zombeteira, é de que meus caprichos me trouxeram até esse ponto, meus desejos de superioridade e aparência, que se mostraram serem minha queda, e agora, como forma de aviso, lhes digo o porquê.

Belos jantares de rica variedade de comes e bebes. Ah, como adorávamos faze-los, eu e minha falecida esposa, para nossos amigos e colegas da alta sociedade. Uma desculpa, se não mais que isso, para trazê-los a nossa residência onde exibíamos com gosto o que era nosso.

Malditos sejam esses jantares, se não fossem por eles, não estaria agora olhando para ela, bela como jamais estivera, mas sem mais a cor e a chama da vida.

Pois digo, que tudo começou com uma viagem a terras exóticas, onde junto de minha amada, encontrei uma pequena lojinha de artigos antigos.

Maravilhas de todas as partes e épocas que já se ouviu falar fizeram meus olhos brilhar, mas nada conseguiu chamar minha atenção da mesma forma quanto aquela bela peça de cristal. Um decanter de vinho, de base arredondada e corpo afinado, cuja boca se apertava em um suave pontal para despejar a bebida. “Perfeito! ” eu falei “Perfeito para exibir em um jantar!”

Perfeito, talvez, na sua propriedade única, que não consegui enxergar de início, mas hoje me é tão clara quanto a luz do sol num dia de primavera.

“Ah, vejo que o senhor tem bom olho, meu senhor” disse-me o vendedor “Sim, posso ver, pois ele se pôs sobre nada mais nada menos que o decanter de Vênus!”

“Decanter de Vênus? ” perguntei.

“Sim, meu estimado senhor. O decanter de Vênus. Peça tão rara em minha coleção, única, na verdade e de características muito peculiares, até mesmo magníficas! ”.

“Uma peça muito bonita, de fato, ainda mais para mim, um amante do cristal... Mas vejo apenas um decanter, meu senhor. O que ele tem de especial? ”.

“Pois veja senhor, que de fato é um instrumento para se servir bom vinho, mas quando usado corretamente, sua magia é colocada em pratica “.

“Poderia ser mais claro, senhor? “.

“Mas é claro, meu senhor, então preste atenção: Um decanter de vinho, recipiente para conter bebidas finas. Para ser usado, é preciso que exista um casal; que o marido sirva a esposa antes dele, e que da bebida os dois usufruam, e assim beleza eterna para ela ele trará! ”.

Uma história interessante, admito, mas apenas isso, foi o que pensei do que o homem me disse. Mas a peça, tão bela, de brilhante cristal, foi o que me chamou a atenção, e por isso comprei.

Voltando a cidade, já no primeiro jantar, convidamos três casais a nossa residência, para junto de nós, partilhar de uma rica refeição. O motivo, contudo, era, como sempre, para exibir nossos bens e riquezas, para que nossa reputação se mantivesse em ascensão. E o decanter, ah, o decanter, que bela aquisição, logo que chegaram, já o viram, e não puderam deixar de exaltar toda sua perfeição.

“Mas tem mais, meus amigos...” comecei eu “Mais do que encontra os olhos... Pois não é apenas um decanter qualquer, mas uma peça nobre e sem igual! ” .

Contei então o conto do vendedor, e todos fizeram o ritual. Cada um dos senhores serviu primeiro sua esposa, então pôs o vinho para si. Beberam juntos, rindo da ideia de conquistar beleza eterna.

Ah, se eles soubessem... Se eu soubesse...

Pois bem, o jantar foi um sucesso, e após seu findar, cada um retornou a sua habitação. Eu e minha esposa deixamos a limpeza a cargo dos criados e para nosso quarto subimos então.

Nos deitamos prontos para dormir, e foi então, que a magia entrou em ação.

Tenho pouca lembrança do que se passou no momento... Apenas fragmentos eu diria, do que veio então. Minha esposa, em estado de êxtase, despiu-se por completa e deitou-se na cama, enquanto eu, fui até o banheiro e peguei minha navalha de fazer a barba, sentindo com meu dedo seu fio afiado.

Voltei até ela, que me sorria lindamente, e passei a lâmina em seu pescoço.

Você deve pensar que isso fez jorrar sangue, mas não... Apenas um delicado fio vermelho surgiu, como um belo colar cujo sangue parecia formar gotas de cristal vermelho, brilhantes, bom, foi o que apareceu. E ela, ainda sorrindo, lentamente fechou os olhos, e padeceu.

Acordei na manhã seguinte, deitado ao seu lado, sem de nada conseguir lembrar. Quando fui beija-la, senti que estava fria como gelo, e não consegui acreditar. Havia, em um estado de descontrole, matado minha amada, que deitada ali, estava mais bela que jamais acreditei poder ficar.

Em pânico, não deixei que os criados a vissem, mas a verdade é que não soube o que fazer.

Passaram-se se alguns dias, e com esse tempo, soube da apreensão dos homens que haviam partilhado daquela noite de jantar. Todos condenados a forca, por terem assassinado as esposas.

“Não fui eu, detetive! “. Foi o que li que falavam aos jornais, mas as provas estavam escancaradas e do crime não poderiam escapar.

Percebi também, durante esses dias, que minha esposa continuava tão bela quanto nunca. Já se fazia mais de uma semana que havia falecido, e nem um mal cheiro ou sinal de decomposição aparecera em seu belo semblante.

“O decanter” pensei eu... O decanter funciona, a magia esta preservando sua beleza, mas de uma forma cruel. Sem mais poder envelhecer, e sem ter comigo um final.

Tentei destruir a peça de todas as maneiras, quebra-la para que ninguém mais tivesse de sofrer esta sina, mas mesmo sendo de fino cristal, ele continua inteiro.

Por isso resolvi escrever esta nota. Um aviso. Deixá-lo-ei dentro do decanter, que vou esconder embaixo do piso de madeira de minha sala. Um dia, alguém há de o encontrar.

Quanto a mim, deixarei minha querida esposa. Sei que logo vão descobri-la. Acredito que vai ter seu digno sepultamento, e para sempre, embaixo da terra, permanecer bela.

Eu, no entanto, não estarei aqui para ver isso acontecer. Esta noite mesmo eu parto, vou para longe.

Não morrerei na forca, por pois mais que tenha sido minha mão a pôr fim a sua vida, não assumo a culpa desse crime tão brutal.

Culpo o decanter de cristal.

 

Leonarno Pasqual Colle

 


Matérias Relacionadas
COMENTÁRIOS

Permitir Cookies

Este site utiliza cookies para melhorar a experiência do usuário. Veja nossa Política de Privacidade