Livro não é só conhecimento
O tema é polêmico. Vira e mexe ele volta a movimentar as redes sociais para causar muitos atritos desnecessários e poucos diálogos construtivos. Mesmo assim, é bom termos em mente que logo essa discussão voltará à pauta e mesmo que não seja do seu desejo se manifestar sobre isso, achamos que talvez você gostasse de saber mais um ponto de vista dado por alguém que, coincidentemente, trabalha com isso. Livros são apenas para adquirir conhecimento?
O livro é um dos produtos que tratamos com uma reverência. Tal como um vinho, ele ocupa um lugar de destaque em coleções ou nas estantes de quem deseja parecer culto ou importante. Não foi por acaso que as vendas de paineis e papeis de parede com estampa de biblioteca dispararam em 2020 para figurar como fundo nas lives que todos acabamos tendo que participar.
Ele é um presente, uma reverência, repleto de apelo sentimental quando vem com uma dedicatória personalizada ou com um autógrafo do autor. Mas não me parece adequado colocá-lo em um pedestal. Livro é um produto, tal como um vaso de planta. Há quem deixe o vaso de planta na parte externa da casa e não se incomode caso ele desbote no sol. Há quem cuide dos vasos de plástico como de fossem de cristal. Assim, há quem venera o produto livro e quem prefere usufruir dele fazendo anotações nas margens, orelhas nas páginas, grifos e outras marcações. Tal como o vaso, o uso do livro é individual e só diz respeito ao proprietário. O ponto central é que os livros são feitos para serem lidos, assim como os vinhos são feitos para serem tomados.
No quesito conteúdo, muito se discute sobre o que é literatura e o que não é, em outras palavras, o que deveria ser estimulado e o que não deveria. Um famoso editor brasileiro (que eu não citarei o nome) tem uma ideia bastante radical sobre isso, mas que nos provoca a pensar. Ele diz que todo livro, na realidade, é de autoajuda. Em sua defesa, pontua que toda leitura é realizada para ajudar o leitor a fazer alguma coisa, seja adquirir um novo conhecimento, seja aperfeiçoar seu autoconhecimento, seja fugir da realidade com uma fantasia. A fuga é permitida. A fuga, nesse caso, é tão necessária quanto aquela novela das seis horas da tarde, que tem um enredo leve o suficiente para que o público se deixe levar pelas risadas e desligue sua mente das tarefas do dia a dia. Ela é tão necessária quanto os programas de música nas rádios e quanto às séries nos canais de streaming. Ora, se ler para escapar fosse tão errado assim, os cinemas só apresentariam documentários.
Mas há quem prefira ler um livro apenas para adquirir conhecimento, especialmente técnico. Não há nada de errado nisso. As editoras viram esse movimento do mercado consumidor muito antes do que as emissoras de TV e antes mesmo de existir plano de TV a cabo com pacotes de canais especializados em filmes ou documentários ou esportes ou infantis, já havia editoras especializadas em públicos específicos. A segmentação de mercado não é ruim. Ao especializar a produção, as casas editoriais conseguem oferecer um produto mais assertivo ao consumidor. O que importa nesse caso é entender que o fato de você não ser o público-alvo daquela empresa não inviabiliza o seu trabalho e nem pode ser motivo para desmerecer seus produtos e consumidores.
Voltando ao quesito aprendizagem, há que se abrir um parênteses quando o assunto é "ler apenas quando ensina alguma coisa". Uma das coisas mais mágicas da literatura é mostrar novas visões de mundo de uma forma muito sutil e crível. Ao ler sobre um casamento, você, leitor, têm toda autonomia para decidir se considera a distribuição dos lugares na cerimônia tão importante quanto a noiva ou tão dispensável quanto a mãe da noiva. Literatura é sobre identificação. Sobre se reconhecer em fragmentos dos personagens e vivenciar (com eles) as suas ações, bem como as consequências. E nas vivências também existe lugar para o riso, para o choro, para a descoberta.
Quando ainda estamos descobrindo o mundo, os livros estão lá. Nem todos os volumes da seção infantil apresentam o be-a-bá ou uma lição de moral. Muitas vezes, o livro preferido deles apresenta uma parte tátil ou páginas com pop-ups (aquelas dobraduras que se abrem em 3D) em livros cuja história pode parecer boba aos adultos. Outras tantas vezes, a preferência de leitura será por obras que, teoricamente, têm pouco conteúdo como os famigerados diários. O mais importante, no entanto, não é o conteúdo, é a experiência.
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