Comer sem desperdício
Mais de 20 milhões de pessoas passam fome no Brasil. O dado faz parte do estudo "Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil", elaborado pela Rede Pessan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional). Com menos da metade dos brasileiros com situação de segurança alimentar, 55,2% em situação de insegurança alimentar e 9% convivendo com a fome, sendo a pior condição encontrada nos domicílios da área rural, comer bem na terra da fartura onde tudo o que se planta, colhe, se tornou um luxo.
A culpa não é só da pandemia. Os dados indicam um retrocesso de 15 anos em apenas cinco. Entre 2013 e 2018, a ocorrência de fome aumentou 8% ao ano. Este índice passou a ser de 27,6% ao ano entre 2018 e 2020 conforme dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares e VigiSAN. Em contrapartida, o consumo de alimentos saudáveis diminuíram 85% nos domicílios em situação de insegurança alimentar durante a pandemia. A carne foi reduzida em 44% dos domicílios, as frutas em 40,8%, os queijos em 40,4% e as hortaliças e legumes em 36,8%.
Mundialmente falando, 811 milhões de pessoas passam fome enquanto 132 milhões sofrem as ameaças da insegurança alimentar enquanto 14% da produção de alimentos do mundo é desperdiçada entre a colheita e o comércio. Em termos financeiros, a perda é avaliada em 400 bilhões de dólares. Segundo a FAO, 931 milhões de toneladas de comida vão parar no lixo todos os anos, um desperdício que atinge toda a cadeia produtiva incluindo a água, uso do solo, energia, trabalho humano e capital jogados no lixo. Para a FAO, a cadeia de abastecimento alimentar poderá se tornar um dos maiores emissores de gases de efeito estufa, ultrapassando a agricultura e o uso da terra.
Para reverter este quadro precisamos, é claro, de políticas públicas eficientes como a reestruturação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e de diversos programas de aquisição de alimentos e fornecimento de água potável, todos importantes para manter uma estrutura de segurança alimentar e nutricional e tornar o país mais resistente às crises econômicas e sanitárias. Mas enquanto isso não acontece, pode-se agir individualmente.
O aproveitamento integral dos alimentos não é um tema novo, mas é recorrente quando o assunto está relacionado à alimentação.
Há quem defenda que é até mais do que uma prática, estendendo-se para um modo de vida em que não apenas o valor nutricional está em jogo, mas também a distribuição igualitária e o cuidado com o meio ambiente. A ideia vai na contramão do pensamento de que o Brasil é a terra da abundância, onde nunca faltará alimento à mesa (à mesa de quem?). Se nunca faltará, o que nos impede de usar apenas a polpa e desprezar a casca, a entrecasca, a folha, o talo e a semente? O que nos impedirá de descartar o que é visto como um subproduto?
A resposta é a consciência.
Partes não-convencionais dos alimentos podem ter de duas a seis vezes mais nutrientes do que a polpa e porções antes desprezadas podem substituir ou incrementar outros pratos.
Caldos, geleias e outros
Este é o famoso exemplo das cascas de alimentos.
Com certeza você já se deparou com alguma receita de caldo de legumes utilizando as cascas dos alimentos que seriam desprezadas. Aí podem entrar cascas de cebola, alho, talos de salsão, brócolis, e outros legumes parcialmente aproveitados. Este substituto do caldo de legumes industrializado não carrega glutamato, conservantes, é mais saboroso e pode ser congelado para usar em diferentes preparos. Para caldos de origem animal, utilize as partes desprezadas da galinha como o pé (rico em colágeno e cálcio), ossos de boi, e espinha, cabeça e rabo de peixe.
Cascas de melancia e abacaxi podem ser incorporadas a doces como cocadas e brigadeiros, enquanto a casca da laranja e do limão podem ser cristalizadas. Além de reduzir o desperdício, a casca da laranja fornece seis vezes mais fibras, mais potássio, mais cálcio e quantidade igual de vitamina C que a polpa. Já as cascas da batata, da cenoura, beterraba, chuchu ou mandioquinha podem ser transformadas em chips.
No caso do maracujá, por exemplo, a parte branca, chamada de entrecasca, é rica em pectina e pode ser utilizada para espessar preparações como geleias. Como um substituto do açúcar, a entrecasca do maracujá pode ser retirada depois de uma fervura de 20 minutos e processada no liquidificador. Para a saúde, contribui com a sensação de saciedade e auxilia no controle da glicemia.
Mas aí vamos comer a casca que está cheia de agrotóxicos?
Se a sua busca pelo aproveitamento integral dos alimentos não passa pela redução do uso de agrotóxicos e pela priorização dos orgânicos, vale a pena repensar, afinal eliminar as cascas com resíduos de agrotóxicos não é exatamente o que se busca. Embora parte dos produtos químicos possa passar para a polpa dos alimentos, uma boa higienização da superfície externa com água sanitária ou bicarbonato de sódio pode contribuir muito.
Fazer suas compras com produtores locais, preferindo produtos da época, também pode ajudar muito na saúde e no bolso.
Ao fazer compras nas feiras, por exemplo, evite pedir que o produtor "tire o mato" dos legumes como cenoura, beterraba, brócolis ou couve-flor. Este mato, as folhas, podem ser consumidos de diversas formas. A rama da cenoura pode substituir a salsinha em diversos preparos, folhas e talos da beterraba podem ser consumidos em forma de salada ou na vinagrete, e folhas de brócolis ou couve-flor podem ser transformadas em charutinhos de carne.
Do subproduto ao desejo de consumo
Descoberto há mais de 3 mil anos, o soro do leite foi identificado pelas populações a partir do transporte do leite em estômagos de bezerros, quando o produto coagulava naturalmente, dando origem ao soro e a coalhada.
A evolução deste processo deu origem ao queijo e toda indústria desenvolvida para a criação deste produto.
O soro, visto como um produto de pouco valor, era rejeitado e descartado com a pulverização de campos ou jogado diretamente em rios, lagos ou oceanos.
Quando jogado no solo, o soro estimula o crescimento das plantas e aumenta a retenção de água, mas é altamente poluente por sua elevada carga orgânica e menor biodegradabilidade. Segundo as Resoluções 20, de 13 de junho de 1986, e 430, de 13 de maio de 2011, do Conselho Nacional do Meio Ambiente, todo e qualquer resíduo ou elemento que altere as características naturais das águas (incluindo os resíduos da atividade de laticínios) devem ser tratados antes do descarte na natureza. Assim, nas indústrias, o soro passou a ser utilizado na criação de derivados como ricota, leites fermentados, bebidas e sobremesas lácteas, produtos de panificação, elaboração de molhos, pastas, alimentação para atletas, etc. Na área rural, o soro pode ser adicionado à ração animal.
Enquanto 10 litros de leite dão origem a 1 kg de queijo e a uma sobra de 9 litros de soro, não cabe espanto perceber que o Brasil produz mais de 5 milhões de toneladas de soro de leite por ano.
Nos últimos anos, com a implantação de fábricas processadoras de soro em Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Espírito Santo e Rondônia, o Brasil vivenciou uma aceleração na oferta de produtos derivados do item.
É o caso das famosas whey proteins, um suplemento feito a partir da proteína do soro do leite, com alto valor comercial.
Mas fora da indústria, há quem sugira adicionar o soro do leite no preparo de sucos, sopas ou arroz para ampliar a ingestão de proteínas. Além do aspecto nutricional, o truque de usar soro do leite como substituto em receitas de panificação, como pães, bolos, tortas de liquidificador, roscas, panquecas, pão de queijo, etc., garante a mesma qualidade de sabor e textura que o uso do leite puro e evita o desperdício no ingrediente.
E considerando que o soro é a sobra de um processo de fermentação, ele também tem um vasto uso para acelerar a fermentação de outros ingredientes como vegetais a exemplo do picles de pepino, kimchi (acelga fermentada considerada como a base da alimentação na Coreia), ou sucos gaseificados. Também há quem indique o soro do leite para hidratar o feijão e outros grãos que precisam de remolho.
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