O cronista do cotidiano
“Se o Sinhô não tá lembrado, dá licença de contá”... A mistura perfeita do linguajar caipira com o sotaque “italianado” dos paulistanos foi a maneira encontrada por Adoniran Barbosa e os rapazes do conjunto Os Demônios da Garoa para registrar sua obra musical, que figura em todas as antologias dedicadas à boa música popular brasileira.
São Paulo era conhecida como a terra da garoa, e os rapazes do grupo eram, digamos assim, “endiabrados”, daí seu nome artístico desde 1943. Encorajados por amigos, foram testar seu talentono programa de calouros “A Hora da Bomba”, na Rádio Bandeirantes. Cantaram e encantaram o auditório ganhando o primeiro prêmio: um contrato para duas apresentações semanais no rádio.
Dono de múltiplos talentos, o radialista, ator, cantor, humorista e compositor João Rubinato adotou por nome artístico Adoniran Barbosa e encontrou no grupo vocal/instrumental Os Demônios da Garoa a mais perfeita tradução, pois eles passaram a interpretar suas músicas com um estilo inconfundível. E inovaram ainda mais, pois ao invés de cantar “laiálaiá” eles inventaram “quaisquaisquaisqualigundum”, marca registrada de tanto sucesso quanto as músicas. Essas expressões eram usadas pelos engraxates da Praça da Sé, que queriam falar difícil mas não conseguiam disfarçar os erros de concordância e de pronúncia. As inovações, no entanto, não foram imediatamente aceitas, pois as gravadoras receavam críticas devido aos “erros” cometidos contra o vernáculo.
Em 1955 gravaram o samba “Saudosa Maloca” de autoria de Adoniram em um disco de 78 rpm e como não tinham nenhuma música para o outro lado do disco, o compositorlhes disse: “fiz um samba em parceria com meu amigo Nicola e eu tenho certeza de que vocês vão gostar”. Era o “Samba do Arnesto”, que eles transformaram em sucesso perene.
As letrasde Adoniran são divertidas e ele mostrou o lado romântico em algumas obras-primas, como “Vila Esperança” e “Prova de Carinho”. Em 1965 ele e Elis Regina já tinham cantado juntos no programa O Fino da Bossa da TV Record, e em 1980 a parceria voltou a acontecer com “Tiro ao Álvaro”, lançada no luxuoso álbum Adoniran Barbosa e Convidados. Dois anos depois o povo brasileiro sofreria grande tristeza com a partida prematura da Elis em 19 de janeiro, aos 36 anos, e do Adoniran em 23 de novembro, aos 72.
Nas minhas lembranças guardo com carinho o dia 30 de abril de 1967, quando fiz a primeira entrevista para “Os Discos do Bolinha”, justamente com os integrantes dos Demônios da Garoa. Ali estavam, para uma apresentação nas comemorações do Cinquentenário de Joaçaba, Arnaldo Rosa (voz), Antonio Gomes Neto (Toninho, violão tenor), Claudio Rosa (voz), Roberto Barbosa (Canhotinho, cavaquinho), Ventura Ramirez (violão sete cordas). Enquanto eu gravava a conversa, Arnaldo Rosa fez e me entregou um desenho mostrando um guri, calças curtas, falando “meus camaradinhas bla-bla-bla” no microfone, com a dedicatória de próprio punho: “Ao Meu Amigo Bolinha, Abraços - Arnaldo/Demonios da Garôa, 30-4-67”.
Em 1994 o grupo retornou a Joaçaba para as comemorações dos 63 anos do Clube Dez de Maio, e para surpresa do artista, entreguei-lhe cópia daquele desenho e da gravação da entrevista feita 27 anos antes. Veja no blog“www.osdiscosdobolinha.blogspot.com” o desenho e as fotos.
O maior êxito de Adoniran e dos Demônios da Garoa aconteceu em 1964, ao conquistarem o primeiro prêmio do concurso de músicas de carnaval no IV Centenário do Rio de Janeiro. Um samba paulista, na terra do melhor carnaval do mundo. E que samba! “Trem das Onze”, seu maior sucesso, que pelo tom de despedida revelou-se a música ideal para encerrar os shows de qualquer artista ou roda de samba.
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