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Uma vida em azul


CONVIVER COM O DIABETES TIPO 1 PODE SER MAIS FÁCIL COM O APOIO ADEQUADO

O quadro é claro. Havia se, muita sede. Nesse país com tanta água, havia sede. E não faltava água, pois nesta parte do Brasil não havia seca que expulsou os retirantes. Também não é dos retirantes e suas vidas sofridas de quem se fala, já que ao contrário de lá a sede que se tem não advém do clima e da escassez do ambiente. Água existe. E existe sede. E existe muita urina. E existe muito cansaço. Igualmente, há fome enquanto a balança insiste em diminuir. O quadro é claro. Falamos de diabetes.

Mas de qual diabetes se fala? De acordo com Thiago Malaquias Fritzen (CREMERS 38580/RQE 32525), médico endocrinologista (UFPel) e mestrado em endocrinologia (HCPA/UFRGS), é impossível compreender que o termo diabetes engloba vários tipos de doenças, entre elas a diabetes tipo 1, diabetes tipo 2, diabetes gestacional, diabetes secundário e outras formas mais raras. “Quando falamos de diabetes como doença de adultos ou idosos, estamos falando de diabetes tipo 2. Quando falamos em diabetes nas fases mais precoces da vida, infância e adolescência, estamos falando de diabetes tipo 1”, explica.

O diabetes tipo 1 advém de uma agressão autoimune ao pâncreas. Segundo Thiago, os pacientes com propensão à doença nascem com uma célula que não reconhece as células beta do pâncreas (que produzem insulina) como pertencentes ao corpo e passa a destruí-las gradualmente. “A agressão é tamanha que o corpo já não consegue mais produzir insulina suficiente. No caso do diabetes tipo 2, que se relaciona aos maus hábitos de vida, sedentarismo e obesidade, as células beta são reconhecidas, mas não conseguem produzir insulina na quantidade necessária. Por isso, não é possível dizer que há uma mudança no aparecimento do diabetes nas crianças e adolescentes, pois a ocorrência é diferente”, aponta o médico.

O diagnóstico por sua vez é bastante sintomático. Thiago diz que as crianças começaram a beber muita água, urinar muito, inclusive podendo voltar a urinar na cama, se sentem cansados para fazer brincadeira rotineiras, tem mais fome e comem mais. Entretanto, perdem peso. Esse quadro geralmente acontece em um curto período e como falamos de crianças, é claro que alguns dias já podem causar um desiquilíbrio no organismo decorrente da falta de produção de insula. Entretanto, apesar dos sintomas, eles podem não acender o alerta sobre a doença e o diagnóstico pode vir por outros meios.

Kauã Verona Cossa tinha laringite. A dor de garganta e demais sintomas fizeram com que sua mãe Keli Verona Cossa buscasse o médico e solicitasse alguns exames. Exames de rotina, quem nunca pediu? “Como o resultado da glicose veio alteado, repetimos o exame confirmando o Diabetes. A sensação da descoberta foi a pior possível. A princípio veio a revolta. Eu me perguntava: Por que com ele? Por que com meu filho de 10 anos? Embora se existissem casos de diabetes na família paterna, não passava pela cabeça que nosso filho fosse desenvolver a doença na infância. Mas a partir do diagnóstico sabíamos que a partir dali o cuidado teria que ser redobrado em relação à rotina e alimentação para que não trouxesse consequências ao organismo dele”, conta Keli. Com a determinação que só quem tem filhos sabe encontrar, a família buscou um endocrinologista sem demora e começou o tratamento no mesmo dia da consulta. “Aplicamos a primeira dose de insulina na farmácia mesmo, porque a glicose já estava muito alterada. No início usávamos a insulina regular, que necessita de refrigeração constante e é aplicada com seringas descartáveis. Há mais ou menos dois anos passamos a usar as canetas de insulina, que são mais práticas”, diz Keli.

Thiago esclarece que o diagnóstico é sempre impactante, principalmente por ser uma doença sem cura, com risco de complicações e com terapia injetável. “O que se nota é que famílias que são melhores estruturadas, que cultivam um ambiente familiar saudável e que se ajudam mutuamente, tem resultados melhores. Um comportamento bastante comum logo ao diagnóstico é o sentimento de culpa dos pais em relação ao aparecimento da doença. E isso é importante de esclarecer: o diabetes não surgiu por culpa de algo/alguém, ele surgiria de qualquer forma. Quando as famílias entendem isso e tentam modificar o dia a dia da casa para apoiar essa criança que se descobre diabética, as chances de viver bem, com a doença controla, aumentam bastante”, aponta.

Similar à visão do médico é a da enfermeira Monica Krahl, coordenadora do projeto de extensão Acampamento da Criança com Diabetes na Universidade Passo Fundo em parceria com o Lions Distrito LD-7 e Hospital São Vicente de Paula. “Muitos pais relatam que descobrir que o filho tem diabetes tipo 1 parece receber uma sensação de morte. É muito difícil para as famílias porque a doença não é compreendida, existem muitos mitos em torno dela e esse diagnóstico ocorre, muitas vezes, em situações extremas em que a criança entra em coma, ou apresenta complicações graves em função do descontrole da doença que ninguém sabia que existia ali”, conta a professora. E diante de um cenário tão obscuro, não existe outra saída senão procurar por uma luz.

 

UMA LUZ NO FIM DO ACAMPAMENTO

 

Por alguns dias durante o ano, a comunidade acadêmica da UPF recebe uma série de visitantes que não estão no campus para conhecer os cursos ou a sua estrutura física. Próximo ao Hospital de Olhos, existem barracas montadas sobre a grama e dentro de cada uma delas existem uma família. Cada família tem uma história e vem de um lugar diferente: alguns vem do Rio Grande do Sul, outros de Santa Catarina. Mas independentemente da história individual ou da distância percorrida até a barraca, o que os une é o diagnóstico.

É na UPF que são acolhidas as crianças de 6 a 12 anos que possuem diabetes tipo 1 para participar de uma ideia inédita no Brasil e que realizou, em 2018, sua 6ª edição. “O acampamento nasceu a partir de um sonho do Lions, já que eles têm uma preocupação com a prevenção da cegueira evitável e o diabetes tem a cegueira como uma das suas complicações. A Assessora de Saúde do Distrito LD-7 procurou a universidade para fazer uma ação conjunta com o Hospital São Vicente voltada para as crianças diabéticas. E essa ideia se transformou em um projeto de grandes proporções, que começou com cerca de 10 crianças e hoje tem mais de 150 crianças cadastradas”, conta Monica.

O objetivo do acampamento não poderia ser mais simples e é exatamente a sua simplicidade que encanta quem caminha pelas tuas da UPF nos dias em que ocorre: mostrar para as crianças que elas podem ter uma vida normal. “Existem outros acampamentos para diabéticos no Brasil, mas o que nos diferencia é a faixa etária para quem se direciona. É uma responsabilidade muito grande trabalhar com crianças e por serem menores de idade existe a necessidade de uma supervisão ainda maior. Por isso, eles vêm com a família. A ideia era que viessem a criança e um responsável, mas considerando que temos espaço e estrutura, optamos por permitir a vinda dos pais e até mesmo dos irmãos. Por praticamente quatro dias, as crianças e os pais participam de oficinas com os professores da UPF e com parceiros. Temos oficina de nutrição, primeiros socorros, saúde bucal, encontro com especialistas, enfim, uma série de atividades que buscam mostrar para a família inteira como é possível conviver normalmente com a doença. Além disso, é tudo gratuito”, conta Monica com brilho nos olhos.

E se você, como eu, ficou imaginando como é que esse projeto se mantém ativo, Monica tem a resposta. O investimento vem das instituições parceiras. “A UPF cede o espaço físico, as salas de aula, os professores e os alunos voluntários. O Hospital entra com toda a parte logística, alimentação, as cozinheiras e nutricionistas. Já o Lions busca recursos junto à comunidade. Nós não permitimos que o recurso venha das crianças e alguns pais questionam como podem contribuir. A forma de contribuir é divulgar a conta para depósito de doações ou organizando pedágios nos seus municípios, mas não é obrigatório. A ideia principal é facilitar o acesso”, diz.

Como recurso didático, o acampamento fornece um ursinho de pelúcia com indicações coloridas de onde é possível aplicar a insulina para permitir que a criança interaja com o brinquedo e veja a aplicação como algo natural. “Além do ursinho, eles ganham camiseta de identificação e outros materiais de apoio. Os irmãos que acompanham também recebem algum brinde”, conta Monica. Com linguagem adaptada para crianças e familiares, foi possível notar uma grande diferença na vida das crianças que participam do acampamento. “Temos relatos incríveis de mudanças na vida, na autoestima, no relacionamento com os amigos e até no desempenho escolar. É impressionante porque emociona muito. A criança que é diabética tipo 1 passa a ser tratada de forma diferenciada socialmente. É muito comum encontrar pais que protejam de tudo com medo das consequências do descontrole glicêmico, tanto quanto é comum encontrar crianças que são isoladas na escola, deixam de ser convidadas para brincar porque, por desinformação, os colegas tem medo de pegar diabete, etc. Então essas famílias vêm para o acampamento. Os pais percebem que os filhos podem fazer as atividades que qualquer outra criança faria, inclusive brincar na lama, escorregar na água, jogar futebol, etc. Temos uma parceria com o grupo de escoteiros que faz com eles algumas atividades mais puxadas exatamente para mostrar que a doença não é um impedimento! Em outra perspectiva, as crianças aprendem que podem participar de brincadeiras, festinhas, podem comer brigadeiro se naquele dia adequar a dose de insulina, enfim, tudo isso vem complementar o acompanhamento que a equipe de saúde que atende aquela criança já orienta. Eles também têm contato com outros profissionais de diversas áreas que são diabéticos tipo 1 e tem carreiras consolidadas, tem mestrado, tem doutorado, para evidenciar as possibilidades de futuro”, se emociona a coordenadora.

A equipe recomenda que a crianças retornem ao acampamento todos os anos para que este momento de interação não seja perdido. O evento de 2018 contou com uma particularidade: algumas crianças que participaram das primeiras edições já ultrapassaram a idade permitida para ingressar no acampamento. Para que o laço não seja cortado, estes jovens participaram das atividades em uma nova categoria, atuando como monitores. “Eles passaram por um cursinho de formação, tiveram uma formatura e passaram a integrar a equipe de voluntários do projeto. Nossa intenção é criar neles a necessidade de passar o aprendizado para outras crianças”, justifica Monica.

Diante do envolvimento da comunidade acadêmica e crescimento do projeto, Monica permite-se sonhar um pouco mais alto. “Imaginamos que o envolvimento seria apenas dos cursos da área da saúde, mas temos desde estudantes de direito, agronomia, licenciaturas, jornalismo, ciência da computação, entre outros, participando do projeto. Grupos de pesquisa da UPF tem vindo fazer pesquisa com os alunos. Já tivemos publicações em revistas cientificas e tudo isso vai criando em nós um desejo de criar um curso de especialização multiprofissional para atender a criança com diabetes. No futuro nosso sonho é montar um Hospital Dia para atender essas crianças”, conclui.

 

A ROTINA EM CASA

O controle do diabetes, entretanto, não se resume à injeção de insulina. De acordo com Thiago, o sucesso depende de vários fatores, sendo fundamental que a criança e seus familiares conheçam a doença. “Eu costumo resumo o manejo excelente em três pilares: (1) Terapia com insulina adequada; (2) Dieta equilibrada e compatível com a fase de desenvolvimento do indivíduo; (3) Atividade física. A realização adequada dessas três variáveis aumenta muito a chance de controlar a glicemia e ter êxito na terapia. É por isso que o tratamento do diabetes é sempre multidisciplinar, ou seja, com vários profissionais auxiliando nos mais diferentes campos”, explica.

Na vida cotidiana de Keli e Kauã, a mudança na rotina foi drástica. “Lidar com o diabetes não é tão fácil quanto parece. Não é só açúcar que deve ser controlado, mas a alimentação toda. Mudamos tudo em casa optamos pela versão integral dos carboidratos, abolimos o açúcar e usamos apenas adoçante. Sempre preferimos as frutas, verduras e produtos dietéticos, mas ainda há uma grande deficiência no mercado quanto a esses produtos e o custo deles é altíssimo”, conta Keli.

Enquanto a mãe acompanha as notícias diariamente sobre o avanço de tratamentos menos invasivos, o jovem de 13 anos se dedica a escola e as atividades físicas como futebol, tae-kwon-do e skate. “A medicina está muito avançada em algumas áreas, mas deixa a desejar no diabetes, que é uma doença que afeta pessoas pelo mundo todo. Acredito que num futuro próximo possamos ter um tratamento por via oral, abolindo a insulina injetável, dando uma qualidade de vida muito melhor aos pacientes diabéticos”, espera a mãe.

 

NÃO SEJA ESSA PESSOA

 

Se a informação é a melhor aliada para o controle adequado do diabetes, confira estes quatro mitos sobre o diabetes explicando pelo Dr. Thiago e perceba o que não falar sobre a doença. Na dúvida sobre o que falar, escolha sempre ser gentil e pedir informações sem julgamentos prévios.

 

1. “Você teve diabetes porque comeu muito doce? ”

O diabetes tipo 1 apareceria de qualquer forma, independente da alimentação ou estilo de vida, já que se trata de uma doença com predisposição genética.

 

2.“Filho não brinca com aquela criança diabética porque ela pode te passar a doença. ”

Não existe a menor possibilidade de passar diabetes para alguém, já que a doença não é contagiosa.

 

3.“Cuidado para não usar muita insulina. Isso vicia, viu? ” porque ela pode te passar a doença”

A insulina não é um medicamento com potencial de causar dependência. Os pacientes com diabetes tipo 1 precisam usar insulina por toda a vida porque, se pararem de usá-la, podem ter complicações graves e óbito.

 

4."Eu vi na televisão que os diabéticos precisam de dieta específica”

A alimentação do diabético não tem diferença da alimentação de quem quer ser saudável e cuidar da saúde O paciente com diabetes pode, eventualmente, comer doces, desde que seja com moderação e com correção adequada com insulina. Isso deve ser discutido com o endocrinologista da criança.


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